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"Turminha dos Direitos Humanos, Não Encham o Meu Saco"

 


Esperei uma semana para escrever este texto, pois em momentos de luto, a única coisa que podemos fazer é oferecer nossa solidariedade aos familiares e amigos, acolhendo a dor e a revolta daqueles que se indignam com a falta de segurança em nosso cotidiano. Há uma semana, a jovem Natany Alves, de Quixeramobim, no Ceará, foi brutalmente assassinada por três homens que a sequestraram enquanto ela estava em seu carro, próximo à sua igreja.

Na mesma semana, a mais de 2 mil quilômetros de distância, bandidos tentaram invadir uma delegacia no Rio de Janeiro para resgatar um conhecido traficante. Atualmente, a capital fluminense e a região da Baixada são controladas por diversos grupos armados, que envolvem facções, milícias e outros modelos de organizações criminosas. O sociólogo José Cláudio, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRRJ), faz uma afirmação contundente: “No Rio de Janeiro, a milícia não é um poder paralelo. É o estado”.

Talvez você me questione qual é a relação entre os dois episódios, já que o primeiro se trata de um crime brutal cometido por pessoas sem nenhum vínculo com organizações criminosas, e o segundo envolve grupos armados que se infiltraram em diversos territórios brasileiros, inclusive na esfera pública, com grandes ramificações fora do país. Ambos os episódios estão inseridos em um contexto de ausência de segurança pública que os cidadãos brasileiros têm vivenciado durante décadas. Os governos eleitos ao longo desse período foram incapazes de dar respostas convincentes à epidemia de violência que vitimou especialmente homens negros e periféricos.

É importante destacar um outro fator presente nesses dois episódios violentos: a resposta organizada e sistemática contra os "direitos humanos". Como se estivessem combinados, líderes de extrema-direita reagiram aos dois casos, não apresentando soluções reais para o problema, mas culpando uma espécie de entidade abstrata criada em seus discursos, a qual chamam de "turma dos direitos humanos". Essa narrativa, frequentemente utilizada, desvia o foco das verdadeiras causas da violência e da insegurança, simplificando questões complexas e ignorando a necessidade de políticas públicas eficazes e inclusivas. Ao invés de enfrentar os desafios estruturais, essa retórica alimenta polarizações e enfraquece o debate necessário para a construção de uma sociedade com um maior nível de segurança.

No caso do Ceará, enquanto a família ainda vivia o luto pela perda de Natany Alves, o Capitão Wagner, um líder da extrema-direita que perdeu espaço nos últimos anos, tornando-se uma figura irrelevante no meio político cearense, gravou um vídeo juntamente com sua esposa e filho, colocando em dúvida alguns princípios do Estado Democrático de Direito. No vídeo, publicado em plataformas digitais, ele conversa tranquilamente com sua família, como em um comercial de margarina, sobre o assassinato de Natany. Em um primeiro momento, ele questiona que os assassinos foram levados para fazer o exame de corpo de delito e, se encontrado algum tipo de lesão, os policiais poderiam ser processados. Entretanto, a atuação policial foi exemplar, resolvendo um crime gravíssimo em poucas horas, sem o uso da violência.

Esse tipo de questionamento pode motivar forças policiais a agirem com violência em determinados momentos, colocando em risco não apenas aquele que está sob custódia do Estado, mas também os profissionais da segurança que estão trabalhando, os quais podem perder seus empregos por condutas incorretas. Além disso, comportamentos violentos não são esperados de trabalhadores e trabalhadoras da segurança, pois, quando passam a agir dessa forma, podem ser facilmente identificados como milícias armadas.

Em um segundo momento, o Capitão questiona o trabalho da Defensoria Pública, que solicitou a revogação da prisão dos acusados. A estratégia parece clara: aproveitar-se da indignação popular com o crime para se apresentar como um político igualmente revoltado e, ao mesmo tempo, atacar a Defensoria Pública. No entanto, essa instituição desempenha um papel fundamental ao garantir o acesso à justiça e a defesa dos direitos de cidadãos que não têm condições financeiras para contratar um advogado particular. Funciona como um braço do Estado que oferece assistência jurídica gratuita, assegurando que todos, independentemente de sua condição econômica, tenham direito à defesa.

A solicitação feita pela Defensoria Pública, de aplicar outras medidas cautelares aos acusados, é exatamente o mesmo que um advogado particular faria em defesa de seu cliente. E, assim como ocorreria no caso de um advogado privado, essa solicitação provavelmente seria negada pelo juiz responsável. Portanto, o que vemos aqui não é uma genuína revolta pelo assassinato, mas um discurso populista que busca descredibilizar uma instituição essencial para aqueles que mais precisam de defesa. Nesse cenário, a vítima acaba ficando em segundo plano, enquanto o debate é desviado para ataques infundados contra uma das poucas ferramentas que garantem justiça para os mais vulneráveis.

A mesma necessidade de desqualificar o trabalho dos defensores de direitos humanos aparece no discurso do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro. Nos últimos anos, facções criminosas e milícias ampliaram seu controle sobre o estado a ponto de, na semana passada, tentarem invadir uma delegacia de polícia. Em um estado onde, entre 2022 e 2023, 37 crianças de 0 a 11 anos foram mortas por armas de fogo, e mais de 200 adolescentes de até 17 anos perderam a vida pela mesma causa; onde pessoas frequentemente deixam de ir ao trabalho devido a confrontos entre grupos armados, o governador publicou um tuíte, no mínimo, curioso: “A resposta será dura e na mesma proporção, só que com efetividade e dentro da lei. Turminha dos 'direitos humanos', não encham meu saco”.

Segundo o governador, a incapacidade de resolver os problemas do Rio de Janeiro estaria na tal “turminha dos direitos humanos”. Mais um governo, mais um político de extrema-direita, desvia o foco dos problemas estruturais de segurança pública para atacar uma entidade abstrata chamada “turminha”. Isso não apenas expõe a incompetência política do governador, mas também vai além: o discurso parece validar práticas ilegais, que certamente não se alinham com os padrões éticos e profissionais da segurança pública, mas que, por outro lado, fortalecem o trabalho das milícias. Essa narrativa não só ignora as raízes profundas da violência, mas também coloca em risco a população e os próprios agentes de segurança, ao incentivar ações que podem descambar para a arbitrariedade e a violência institucionalizada.

Certamente, precisamos de uma resposta eficaz para o estado permanente de violência que assola o país. No entanto, na mesma medida, não podemos permitir que discursos simplistas e violentos sejam naturalizados em nossa sociedade. Nos últimos anos, políticas e propostas sérias de segurança pública têm sido discutidas e apresentadas por diversos grupos especializados, mas nenhuma delas encontrou espaço ou apoio nos governos eleitos. Em vez disso, o que se vê é a valorização de discursos inflamados, superficiais e sem reflexão, que nascem com ideias condenadas ao fracasso desde o início.

É urgente uma reforma profunda no sistema de segurança pública ou, até mesmo, a criação de uma nova estrutura policial, que seja capaz de atuar com transparência, eficiência e respeito aos direitos humanos. É essencial que indivíduos com propostas extremistas e antidemocráticas não utilizem as instituições públicas para fortalecer grupos que atuam à margem da lei. A segurança pública deve ser um instrumento de proteção e justiça, não um meio para perpetuar a violência e a ilegalidade.

Régis Pereira

23 de fevereiro de 2025

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