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Páscoa, a memória de um sonho



Para todos que acompanham a história de Jesus Cristo através da Palestina podem perceber que sua prática em favor do povo marginalizado provocaria adesões e oposições. A chegada de Jesus em Jerusalém acelera o conflito entre os mesmos e demonstra que a neutralidade se torna algo impossível. Segundo as palavras de Balancin “não dá mais para ficar em cima do muro”. As opções têm que ser feitas: a favor ou contra a Jesus”.

Judas optou pela traição. Ele escolheu ficar do lado das autoridades. É a aliança de um discípulo com o centro do poder que leva Jesus Cristo a cruz. Os demais discípulos nos parecem que estão dispostos a defender o projeto de liberdade a qualquer custo. Mas, Jesus que confia na fidelidade do Pai, sabe muito bem que a covardia pode estar escondida por trás da boa vontade de alguns que o seguem. Mas ele está convicto que os discípulos, apesar do acovardamento latente, seguirão seu projeto, por isso planeja: “depois de ressuscitar, eu irei à frente de vocês para a Galileia” (Marcos 14,28).

Todos conhecemos o final dessa história, incluindo a ressurreição no terceiro dia. A sentença religiosa contra Jesus foi de blasfêmia e o Sinédrio o condenou por unanimidade à pena de morte. Lembremos: condenado pelo poder religioso e condenado pelo poder político. Considerado impuro, blasfemo, subversivo, bandido, ele está abandonado carregando sua cruz. À inscrição de Rei dos Judeus inaugura na história o tempo da realeza que não oprime, mas que dá a própria vida. O Jesus Rei que assume em sua própria carne e alma a condição dos mais marginalizados, desprezados e injustiçados seja física, política, social ou religiosamente.

Segundo Boff, Jesus deixou um opus inconclusum, quer dizer uma obra inacabada. Não vindo o Reino na plenitude desejada, apenas realizada em sua pessoa pela ressurreição, entraram em seu lugar o movimento de Jesus, as igrejas, o cristianismo popular e os valores cristãos que penetram a cultura ocidental. Essa nova forma não pode ser considera decadência da anterior, é simplesmente outra coisa. O autor nos lembra que a influência do sonho de Jesus nos continentes não foi algo sempre pacífico. Esse processo é marcado por momentos de violência e de paz, por pactos mentirosos e por gestos heroicos. “Às vezes, a dimensão dia-bólica ganhou proporções funestas que nada tinham a ver com o legado de Jesus; outras vezes, a sim-bólica alcançou os píncaros da perfeição e mostrou a possibilidade da antecipação, mesmo que parcial, do Reino de Deus. Aí estão os santos e santas, os mártires, os místicos e a piedade de tanta gente simples que tomaram e tomam a sério a causa de Jesus”.

Mas, o que seria tomar a sério a causa de Jesus? O historiador Hoornaert escreve sobre a memória cristã: “Ela foi e continua sendo frequentemente uma memória de vencidos e humilhados, marginalizados e desprezados e como tal não se articula numa “historia” segundo a tradição hegemônica da historiografia nas grandes culturas, através de discursos, monumentos, arquivos, documentos, iconografia e arquitetura. Pelo contrário, ela se transmite de geração em geração como uma cultura popular, uma tradição oral, uma resistência cultural. Daí podemos perceber que a memória cristã sobrevive antes de mais nada em comunidades. Existe uma relação íntima entre memória cristã e comunidades de base”. A partir dessa memória podemos afirmar que levar a sério a causa de Jesus significa ter os mesmos sentimentos que havia nele. Mosconi nos diz: É uma questão de atitude, de prática e não de palavra ou rito bonito.

Ditas essas palavras é preciso recordar que temos um compromisso com essa memória. Um compromisso para manter firme o sonho de Jesus para a humanidade. Esse sonho ultrapassa nossas perspectivas, às vezes limitadas, sobre a realidade que vivenciamos. Os tempos são sombrios e devastadores para todos aqueles e aquelas que acreditam na humanidade. Nossos compromissos devem ser assumidos em prol da vida. As instituições cristãs não podem ter o mesmo comportamento de Judas, se auto afirmarem como discípulas de Jesus, mas na surdina se aliarem com o poder opressor.  Ou mesmo serem como os discípulos: prometerem um seguimento fiel a Jesus, mas se acovardarem nos primeiros sinais de violência e opressão. Se as instituições cristãs não são capazes de contarem e viverem o sonho de Jesus, temos que nos unir nas comunidades de base e continuar a construir esse reino de justiça. É hora de ressuscitar!

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