Pular para o conteúdo principal

É estratégia do maligno nos deixar envolvidos em questões que tiram de nós o foco da vida.



Muitas vozes ecoam nos momentos mais conturbados da história. A escuta parece algo difícil de ser realizada, pois se pressupõem que todos guardam a verdade consigo. Se todos possuem a verdade, o diálogo não é possível, e não sendo possível, a violência daquele que possuir maiores recursos para dominar ganhará espaço. Não é diferente do que tem acontecido ao nosso redor onde boa parte das pessoas naturalizou a prática violenta contra o seu semelhante.

A prática não é nova e me fez recordar uma antiga história bíblica. O evangelista João nos conta que uma mulher foi pega em flagrante adultério. Os acusadores a levaram até Jesus para que se aplicasse a lei judaica que prescrevia que tais mulheres deveriam ser apedrejadas. Indagaram insistentemente por uma resposta de Jesus sobre o fato. Naquele momento, Jesus escolhe chamar atenção para si através do silêncio. Não respondeu rapidamente aos acusadores, mas começou a escrever no chão. Como os acusadores insistiam por uma resposta, Jesus disse que se podia cumprir a lei, mas quem deveria apedrejar era aquele que não tinha cometido nenhum pecado. Depois se recolheu ao seu silêncio. Todos os acusadores saíram reconhecendo suas próprias falhas e erros. Então, Jesus voltou-se para quem realmente importava: a mulher condenada à morte. Para ela ofereceu não a condenação, mas a possibilidade de continuar a sua vida com dignidade.

Todos os dias nos deparamos com pessoas que são trazidas até nós para que possamos entregar sua sentença condenatória. Nesse papel, usurpamos o lugar de Deus como juiz, e afirmamos veemente quem poderá viver e quem deverá morrer. Nessa semana, lidamos com as perspectivas de um país que continuará a assassinar pessoas, de preferência pobres e negras, em busca de uma tal paz social que só interessa a uma pequena elite. Como dialogar com pessoas que nos procura apenas para oferecer ou reafirmar violência? Como agir, quando nós estamos na mira de acusadores, muitas vezes inescrupulosos e armados?

A resposta de Jesus na história contada acima traz três perspectivas interessantes para nós cristãos: Primeiramente, não responder aqueles que se inspiram na morte para solucionar os seus conflitos. Não precisamos alimentar conversas longas e improdutivas com quem não consegue se comprometer com a vida. Segundo, confrontar os acusadores por conta dos seus próprios pecados de forma simples e objetiva: Deus é Deus de amor, se alguma ação nossa não traduz esse princípio, estamos distanciados da força que rege esse universo. Terceiro, precisamos focar no que realmente interessa, o oprimido, aquele que está sofrendo: a mulher que está beira da morte, o faminto, aquele que tem sede, os que choram, os que precisam de nosso abraço e de nosso acolhimento. É estratégia do maligno nos deixar envolvidos em questões que tiram de nós o foco da vida.

Todas essas questões nos convidam a um tempo de resistência e de diálogo com aqueles que mais sofrem. Eles são o nosso foco. Resistir ao mal que habita em nós e controlar nossos próprios impulsos para podermos servir melhor aos outros é essencial. Não abandonar nossas convicções e enfrentar com ousadia a luta por liberdade. A Carta da Terra, escrita em momentos semelhantes como esse que vivemos, retrata bem a esperança que caminhamos: “Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência diante da vida, por um compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, pela rápida luta pela justiça, pela paz e pela alegre celebração da vida”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Mito da Hospitalidade

Júpiter, o deus criador e seu filho Hermes, quiseram saber como andava o espírito de hospitalidade entre os humanos. Travestiram-se de pobres e começaram a peregrinar pelo mundo afora. Foram maltratados por uns, expulsos por outros.  Depois de muito peregrinar tiveram de cruzar por uma terra cujos habitantes eram conhecidos por sua rudeza. As divindades sequer pensavam em pedir hospitalidade. Mas à noitinha passaram por uma choupana onde morava um casal de velhinhos, Báucis e Filêmon. Qual não foi a surpresa, quando Filêmon saiu à porta e sorridente foi logo dizendo: Forasteiros, vocês devem estar exaustos e com fome. Entrem. A casa é pobre mas aberta para acolhê-los. Báucis ofereceu-lhes logo um assento enquanto Filêmon acendeu o fogo.  Báucis  esquentou água e começou a lavar os pés dos andarilhos. Com os legumes e um  pouco de toucinho fizeram uma sopa suculenta. Por fim, ofereceram a própria  cama para que os forasteiros pudessem descansar.  Nisso sobreveio grande

Matuto de Nascença e de Morrença

Se eu pudesse escolher uma expressão que me definisse, diria que sou matuto, um matuto de nascença e de morrença. Nasci e vivi os meus primeiros anos de vida literalmente no pé da serra, todos os dias saía ao raiar do sol pela estrada empoeirada até o curral do seu Tota, onde enchia a minha vasilha (bem pequenina, proporcional ao meu tamanho) de leite e levava até os meus irmãos menores. A minha adolescência passei em cidade grande, para os nossos padrões matutos, que na verdade era apenas uma extensão daquela vida da roça. Como cresci nesse mundo, sou um matuto de nascença, só que hoje, vivo nessa metrópole desejando ardentemente terminar todas as tarefas a mim propostas e lá voltar. Quando eu chegar lá, direi que não me acostumei com os barulhos daqueles carros e motos, com a solidão desses apartamentos, com esses poucos e raros laços de amizade, com a pressa de um povo que corre para lugar nenhum, com a violência que corrói a esperança. Sentarei novamente na calçad

Raimundo Jacó, Sérgio Moro e a Justiça dos Homens Que Deu Para o Mundo.

A morte do Vaqueiro é um clássico da música nordestina. Escrita por Luiz Gonzaga e o seu filho Gonzaguinha conta a história do vaqueiro Raimundo Jacó. Em das interpretações mais clássicas do Luiz Gonzaga ele conta que Raimundo era o seu primo e foi o maior vaqueiro que ele conheceu. Ele teria sido assassinado, de maneira covarde, enquanto estava trabalhando no sol escaldante do sertão. O assassinato foi cometido por pessoas poderosas e fica evidente a existência de uma motivação política nessa ação. A angústia de Luiz Gonzaga é que o assassinato jamais foi investigado pela polícia, que nem mesmo um inquérito abriu, levando-o a utilizar a expressão “a justiça do homem deu para o mundo”. Diante desses fatos a única coisa que Luiz Gonzaga poderia fazer era denunciar a covardia dos homens e o desinteresse da lei em respeitar os direitos dos pobres. Passadas mais de três décadas dessa canção que retratava um Brasil cuja justiça é financiada por pessoas “poderosas”, os números atua