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Rio de Sangue: O Estado que Combate com as Armas e Perde com as Vidas

Nas últimas décadas, observa-se a expansão e consolidação de organizações criminosas no Brasil, abrangendo tanto as facções criminosas quanto os grupos milicianos. Essa atuação tem resultado na infiltração progressiva dessas entidades ilegais nas estruturas estatais de segurança pública. Conforme estudo publicado pela Cambridge University Press, cerca de 50 milhões de brasileiros, o equivalente a aproximadamente 24% da população, residem em territórios sob domínio de facções criminosas. Nessas áreas, tais grupos armados impõem um regime de intimidação e violência, suplantando a presença do Estado e assumindo o controle de funções públicas essenciais que, por direito, caberiam ao poder público oferecer de forma legítima e institucional.

A operação conduzida pela polícia do Rio de Janeiro em 28 de outubro de 2025 não representa uma iniciativa inédita no enfrentamento à criminalidade organizada. O saldo de 121 mortos a consagrou como a operação policial mais letal da história do país. Contudo, é crucial contextualizar este evento dentro de uma tendência estrutural: a escalada de letalidade violenta por parte de forças estatais, que tem sido objeto de críticas recorrentes em diversos relatórios de organismos nacionais e internacionais. Tais documentos recomendam, de forma consistente, uma reavaliação profunda da doutrina operacional e da postura da polícia militar no combate ao crime organizado.

Diante desse contexto de violência estrutural, é compreensível, ainda que preocupante, que segmentos da sociedade celebrem o denominado "sucesso da operação". Essa percepção de sucesso está ancorada na premissa — não verificada judicialmente — de que todos os indivíduos mortos eram criminosos e, portanto, alvos legítimos, efetivando uma prática alheia ao nosso ordenamento jurídico, mas com ressonância real em certos territórios vulneráveis: a pena de morte extrajudicial. Ademais, operações dessa natureza implicam riscos operacionais severos para as próprias forças de segurança, conforme evidenciado pela morte de quatro policiais durante o confronto, demonstrando o elevado custo humano inerente a esse paradigma de intervenção.

É preciso refletir, também, sobre o posicionamento de certos líderes políticos que, à margem da propositura de soluções efetivas para o enfrentamento de grupos armados, publicamente celebram um quantitativo de mortos como um indicador de sucesso. Tal postura não apenas banaliza a perda de vidas humanas, como se afasta de uma abordagem estratégica e constitucionalmente alinhada para a segurança pública.

Nesse contexto, ganha relevância a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, atualmente em tramitação no Congresso Nacional. A PEC propõe a consolidação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) no texto constitucional, conferindo-lhe permanência e fortalecendo sua missão de integrar as ações das polícias Militar, Civil, Penal e do sistema prisional, sob a coordenação da União. Argumenta-se que, se tal marco legal estivesse em vigor, operações de alto custo humano como a em tela poderiam ser evitadas, permitindo um enfrentamento ao crime organizado não apenas mais coordenado, mas também estruturalmente mais eficiente e dentro dos marcos legais.

Infelizmente, episódios de chacina não constituem novidade no cenário brasileiro. E, quando perpetradas pelo próprio Estado, tais ações distam de produzir os resultados de pacificação social almejados pela população. O que se testemunhou nesta manhã foi a materialização da dor e do sofrimento em comunidades historicamente negligenciadas, marcadas pela carência multidimensional que inclui, fundamentalmente, a ausência de paz e a violação do direito à vida.

Os gestores públicos do Rio de Janeiro detêm significativa responsabilidade neste contexto, sendo inadmissível qualquer postura que glorifique ou se orgulhe de uma intervenção que resultou em um verdadeiro rio de sangue. O enfrentamento às facções criminosas é, de fato, um dos maiores desafios de nossa sociedade, para o qual não existem soluções simplistas. No entanto, é uma premissa fundamental reconhecer que não se pode debelar tais organizações replicando a mesma lógica de violência que vitimiza e vulnerabiliza ainda mais essas comunidades.


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